Restrição calórica reprograma o metabolismo
A dieta de restrição calórica é conhecida por prolongar a expectativa de vida de vários organismos e por prevenir doenças associadas ao envelhecimento. O interessante, segundo professora Alicia Kowaltowski, do Instituto de Química da USP e do CEPID Redoxoma, é que essa prevenção envolve mudanças metabólicas. “Os efeitos da restrição calórica não se devem apenas à alteração dietética, o que acontece é uma mudança metabólica secundaria à alteração dietética e é por causa dessa mudança, muitas vezes mitocondrial, que várias dessas doenças são prevenidas”.
As mudanças metabólicas — ou reprogramação metabólica — decorrentes da restrição calórica vão muito além da questão das calorias. “Não é só a oferta de nutrientes que é diferente, não é apenas menos carboidrato, menos proteína, menos lipídio. O que acontece é que o organismo metaboliza os nutrientes de forma diferente. O número de mitocôndrias é alterado e as vias de sinalização levam à formação de mais ou menos produtos diferentes a partir dos mesmos nutrientes”, afirma a pesquisadora.
Com o foco de pesquisas em metabolismo energético e, portanto, em mitocôndrias, Kowaltowski acredita que a organela seja um bom alvo terapêutico para tentar controlar efeitos indesejáveis do envelhecimento. “Mudar a função mitocondrial pode ser uma maneira de se obter os mesmos efeitos da dieta”, afirma.
Estudos publicados pelo grupo de Kowaltowski nos últimos meses mostram os efeitos metabólicos da restrição calórica em órgãos como cérebro, fígado e pele, e no remodelamento da membrana mitocondrial.
Cell Reports
O trabalho mais recente do grupo foi publicado na semana passada na revista Cell Reports e mostra que a restrição calórica muda a estrutura e o metabolismo da pele de camundongos, tendo impacto na regulação térmica do corpo. Animais em restrição calórica têm maior crescimento de pelos, aumento do fluxo sanguíneo e apresentam alteração no metabolismo celular para aumentar a eficiência energética.
Possivelmente, essas mudanças são uma resposta adaptativa que permite aos animais se manterem aquecidos em situação de escassez de alimentos.
A pós-doutoranda Maria Fernanda Forni, primeira autora do artigo, propôs o estudo a partir da observação de que o pelo e a pele de animais em restrição calórica eram visivelmente diferentes do pelo e da pele de animais controle. E, embora seja o maior órgão dos mamíferos e tenha grande importância metabólica por ser o órgão que está em contato com o mundo exterior, ainda há poucos estudos tendo a pele como órgão alvo.
Os pesquisadores utilizaram dois grupos de camundongos: um alimentado sem restrição de quantidade (ad libitum) e outro com redução de 40% na quantidade de calorias ingeridas em relação ao anterior. Comparando os dois grupos, os pesquisadores observaram que os animais em restrição calórica perderam cerca de metade da massa corporal e apresentaram pelos mais homogêneos, longos e espessos.
De uma maneira geral, os animais em restrição calórica exibem uma série de alterações metabólicas e estruturais que provocam mudanças na geração e manutenção de calor. Em nível celular, a dieta provocou o aumento de células tronco dos folículos capilares, com aumento no crescimento dos folículos. Na comparação, os animais em restrição calórica também apresentaram mais vasos sanguíneos na pele, com maior circulação de sangue quente para a superfície. E as diferenças no metabolismo da pele faz com que percam menos energia na forma de calor.
Quando os camundongos tiveram os pelos raspados, os que estavam em dieta de restrição calórica se tornaram mais letárgicos e apresentaram sinais de perturbação metabólica. Os pesquisadores puderam confirmar as propriedades termorreguladoras dos pelos dos animais em dieta com o uso de um sensor térmico capaz de registrar simultaneamente temperaturas abaixo e acima dos pelos, que foi construído especialmente para esse estudo pelo pós-doc Jorge Shinohara, do Departamento de Química Fundamental do IQ-USP.

Segundo a pesquisadora, os camundongos submetidos à restrição calórica têm os padrões corporais de um ser humano com peso normal. Embora tenham uma redução nas calorias ingeridas, não são excessivamente magros. Os animais que estão liberados para comer à vontade, no entanto, acabam se tornando obesos.
Por ser um trabalho pioneiro, esse estudo é fundamentalmente descritivo. Agora, segundo Kowaltowski, falta entender os mecanismos e as vias de sinalização envolvidos no aumento de células tronco dos folículos capilares e nas modificações que ocorrem, tornando a pele de animais em restrição calórica mais jovem por mais tempo.
O artigo Caloric Restriction Promotes Structural and Metabolic Changes in the Skin pode ser lido em http://www.cell.com/cell-reports/fulltext/S2211-1247(17)31177-4
Cérebro, fígado e mitocôndrias
A restrição calórica protege o cérebro contra várias patologias, por mecanismos ainda desconhecidos. Entender melhor os efeitos da dieta no cérebro foi o projeto de pós-doutorado de Ignácio Amigo, sob supervisão de Kowaltowski. Ele investigou o mecanismo pelo qual a restrição calórica favorece a capacidade de retenção de cálcio mitocondrial no cérebro, resultando em proteção contra danos excitotóxicos, que estão relacionados à perda de neurônios em patologias como acidente vascular encefálico, Parkinson e Alzheimer.
Em experimentos realizados in vivo e in vitro, os pesquisadores constataram que a restrição calórica é uma intervenção altamente eficaz para prevenir a morte neuronal excitotóxica, porque aumenta a atividade da cadeia mitocondrial de transporte de elétrons, eleva as defesas antioxidantes e favorece a captação de cálcio pelas mitocôndrias cerebrais. Os resultados dessa pesquisa foram publicados na revista Aging Cell, no artigo Caloric restriction increases brain mitochondrial calcium retention capacity and protects against excitotoxicity, no final de 2016.
A partir desse trabalho, o doutorando Sergio de Menezes Filho resolveu estudar o que acontecia com o fígado de camundongos em restrição calórica, por ser um órgão que também sofre lesão por cálcio. O projeto foi focado na homeostase de cálcio pela mitocôndria. Em um modelo de isquemia e reperfusão os pesquisadores viram que animais em restrição calórica por quatro meses foram protegidos contra um processo chamado transição da permeabilidade mitocondrial, no qual, por uma concentração excessiva de cálcio, a membrana mitocondrial perde a seletividade, comprometendo a síntese de ATP e levando a célula à morte. Os resultados desse trabalho foram publicados na revista Free Radical Biology and Medicine, no artigo Caloric restriction protects livers from ischemia/reperfusion damage by preventing Ca2+-induced mitochondrial permeability transition, em setembro 2017.
Os efeitos da restrição calórica também chamaram a atenção do então pós-doutorando Luis Alberto Luévano-Martínez, um estudioso do metabolismo mitocondrial de lipídios. Ele resolveu analisar a cardiolipina, um lipídio exclusivamente mitocondrial e concluiu que a restrição calórica promove extensiva remodelação da membrana mitocondrial, diminuindo os lipídios oxidados e aumentando os níveis e redistribuindo a cardiolipina. A redistribuição da cardiolipina da membrana interna para a membrana externa ocorre quando há uma mudança no formato das mitocôndrias ou em sua interação com outras organelas celulares, como, por exemplo, o retículo endoplasmático, o que pode ser caracterizado como um efeito de sinalização. Foi a primeira vez em que foi descrita uma mudança desse tipo em consequência de uma dieta. O artigo Calorie restriction promotes cardiolipin biosynthesis and distribution between mitochondrial membranes foi publicado na revista Mechanisms of Ageing and Development, em março de 2017.
Em todos os trabalhos, a questão principal, segundo Kowaltowski, é entender os mecanismos. “Se a gente entender os mecanismos, talvez consiga preservar melhor esses tecidos, mesmo sem a restrição calórica”.