Estudo identifica assinatura lipídica da angiogênese patológica na retinopatia induzida por oxigênio
Em artigo publicado na revista iScience, cientistas do Instituto de Química da USP descreveram alterações no metabolismo de lipídios da retina em um modelo de retinopatia induzida por oxigênio (OIR), que mimetiza a doença de retinopatia da prematuridade (ROP). Eles analisaram a composição lipídica da retina de camundongos com angiogênese normal e patológica e combinaram esses dados com alterações no transcriptoma de RNA mensageiro. Desta forma, identificaram a assinatura lipídica da angiogênese patológica. Segundo os pesquisadores, uma melhor compreensão do metabolismo lipídico na retina pode se traduzir em melhores alternativas terapêuticas e diagnósticas para o tratamento e prevenção de doenças oculares humanas.
A retina, considerada uma extensão do cérebro, é um tecido do sistema nervoso central. Localizada no fundo do globo ocular, ela recebe a luz e a transforma em mensagens visuais que são enviadas ao cérebro. Para funcionar bem, a retina depende do suprimento de oxigênio, de nutrientes e de ácidos graxos essenciais da dieta, transportados pelos vasos sanguíneos. Algumas doenças que afetam a visão, como a retinopatia diabética, a degeneração macular relacionada à idade e a retinopatia da prematuridade têm em comum a angiogênese patológica, que se caracteriza pelo crescimento anormal de novos vasos sanguíneos. O câncer também é considerado uma doença dependente de angiogênese.
As principais alterações encontradas no lipidoma de retinas patológicas foram a diminuição dos níveis de ácidos graxos poli-insaturados ômega 3 e 6 e um aumento de poli-insaturados da classe ômega 9; alterações no metabolismo de lipídios neutros, em particular, acúmulo de gotículas lipídicas ricas em ésteres de colesterol e triglicérides; e alterações no transporte de colesterol na retina mediado por lipoproteínas.
“Essa é a primeira vez que dados de duas abordagens “ômicas” — a lipidômica e a transcriptômica — são integrados no estudo dessa patologia”, afirma a pesquisadora Lilian Costa Alecrim, que divide com o pesquisador Alex Inague a primeira autoria do artigo. Segundo Inague, “a análise de transcriptômica foi a chave para integrar e dar sentido aos dados da lipidômica. Em termos de complexidade dos dados da análise de lipídios, não vi estudos similares”.
O estudo foi realizado durante o doutorado de Inague, sob a supervisão da professora Sayuri Miyamoto, e de Alecrim, sob a supervisão do professor Ricardo José Giordano, ambos do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP. Miyamoto é também pesquisadora do CEPID Redoxoma.
Para Giordano, “este trabalho representa uma contribuição importante para a área de pesquisa, por trazer uma quantidade de dados bastante grande, mostrando a dinâmica de lipídios na retina”.
Gotículas lipídicas
Para induzir a angiogênese patológica no modelo de retinopatia induzida por oxigênio, camundongos neonatos são submetidos a 75% de oxigênio por cinco dias. A alta concentração de oxigênio inibe a produção do fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) e a formação dos vasos sanguíneos na retina. Quando os animais retornam à concentração de oxigênio normal da atmosfera, de 21%, as retinas pouco vascularizadas experimentam um estado de hipóxia relativa, que aumenta a expressão do VEGF além dos níveis fisiológicos, levando ao crescimento exacerbado dos vasos sanguíneos.
“No caso de nós, humanos, a vascularização da retina se completa na última semana de gestação, por isso o problema da retinopatia em prematuros. No modelo animal, a vantagem é que a vascularização da retina de camundongos se inicia após o nascimento. Por isso a gente consegue introduzir a doença nesses animais”, explica Alecrim.
A partir de amostras coletadas em diferentes tempos, os pesquisadores identificaram e quantificaram 300 espécies lipídicas, na condição tanto fisiológica quanto patológica das retinas. Destas, 227, ou 92% do total, sofreram remodelamento, sendo que parte das modificações ocorre com o desenvolvimento normal dos animais. A investigação lipidômica contou com a colaboração do pesquisador Marcos Y. Yoshinaga, ex-pós-doc no laboratório de Miyamoto.
Analisando os dados, o que inicialmente chamou atenção dos pesquisadores foi que praticamente todas as espécies detectadas de triacilgliceróis e de éster de colesterol estavam aumentadas na retinopatia. “De uma forma geral, não só nessa doença, mas numa série de outros modelos, inclusive na esclerose lateral amiotrófica (ELA), a gente vê que situações de estresse oxidativo provocam o aumento dos corpúsculos ou gotículas de lipídios. Vimos esse fenômeno de um aumento muito grande de lipídios neutros — ésteres de colesterol e triacilgliceróis — presentes dentro desses corpúsculos”, disse Inague.
A partir daí, para entender melhor os dados, os pesquisadores integraram a análise dos lipídios com a análise de RNAs mensageiros. “Com a transcriptômica se compara a expressão gênica na doença e na saúde para ver como o DNA está sendo lido. Só que aí a mudança é bem maior: são 3.800 genes que têm expressão diferencial. Foi preciso, então, navegar todos esses genes, filtrar os que são relacionados com o metabolismo de lipídio e, dentro disso, mapear tudo”, explicou Giordano. Essa etapa do trabalho contou com a colaboração do professor João Carlos Setubal, também do IQ-USP, e de seu estudante de doutorado Jhonatas Monteiro, que fizeram as estatísticas dos genes diferencialmente expressos.
Para Miyamoto, o acúmulo de gotículas lipídicas é um fenótipo comum em processos degenerativos. “Isso é visto em várias doenças neurodegenerativas, é um fenótipo meio comum em processos envolvendo estresse oxidativo e em processos degenerativos, que ainda precisa ser melhor entendido”.
Ômega 9
Em outro resultado importante, os pesquisadores detectaram o acúmulo de grandes quantidades do ácido Mead na retina patológica. O ácido Mead é um dos ácidos graxos ômega 9 e pode ser um marcador da severidade da retinopatia de prematuridade, doença causada pelo crescimento anormal dos vasos sanguíneos na retina de bebês prematuros, que pode levar à perda de visão.
“Na nossa análise, conseguimos encontrar parâmetros que diferenciassem espécies de ácidos graxos poli-insaturados. Então verificamos que os ômega 3 e 6 estavam diminuídos e toda a via dos ômega 9 estava aumentada na retina patológica, em comparação com os controles. Aparentemente, na doença, esses ômega 3 e 6 são substituídos pelo ômega 9”, explica Inague. As gorduras poli-insaturadas ômega 3 e 6 conferem alta fluidez para a retina, sendo importantes para sua função.
Esses dados reforçam a importância da suplementação de ômega 3 e 6 para prevenção da retinopatia da prematuridade, como vem sendo sugerido na literatura. No entanto, ainda há questões a serem exploradas, como o controle da fosforilação de enzimas conhecidas como elongases, que catalisam a extensão (ou alongamento) de ácidos graxos. A inibição da fosforilação da elongase ELOVL5, por exemplo, pode fazer com que a retina use o ômega 9 em vez do ômega 3, diminuindo o efeito da suplementação. A modulação dessa enzima talvez esteja relacionada com as vias do fator de crescimento endotelial vascular (VEGF).
A ideia agora, segundo Giordano, é tentar medir o ácido Mead em amostras biológicas e ver se tem uma relação com a severidade da retinopatia da prematuridade. “É possível medir o ácido Mead no sangue no bebê ou talvez na saliva ou mesmo na lágrima”, afirmou.
O artigo Oxygen-induced pathological angiogenesis promotes intense lipid synthesis and remodeling in the retina, de Alex Inague, Lilian Costa Alecrim, Jhonatas Sirino Monteiro, Marcos Yukio Yoshinaga, João Carlos Setubal, Sayuri Miyamoto e Ricardo José Giordano, pode ser lido aqui.